Friday, November 30, 2018

Àrá èyin a róòde...e a rica essência histórica e teatral da ‘Roda de Xangô’



 
O motor que me traz aqui e agora para exercer essa intervenção, é denunciar uma postura assumida pelo projeto racista da sociedade elitista brasileira de implantação e sustentação de um ‘Brasil Pais europeu’, o que, sintomaticamente (os indicadores dessa sintomatologia são inúmeros) passa pela sustentação pseudocientífica da “inferioridade” do africano e de sua herança cultural simbolizada com muita justiça pelo Candomblé”.
E, então, segundo essa sustentação, que o Candomblé é classificado como um movimento de baixo valor intelectual e desprovido de história organizada ou de fundamento direcionador concreto”, sendo por esse motivo nada mais do que um “conjunto amorfo de resquícios de memórias africanas ajuntadas ao acaso ao longo de um período temporal que perpassa as épocas afro-brasileiras da escravidão e do pós-escravidão”, chegando remotamente aos nossos dias. A realidade do Candomblé nega frontalmente e com fatos essa teoria estapafúrdia.
O Candomblé é mal-entendido por conta de um propósito embutido em uma agenda que parametriza essa intepretação perversa e cruel em nome da manutenção de um ‘status quo’ que inferioriza o negro e tudo que dele advém.
Sem mais delongas vou mostrar um pouco disso aqui.
Vou direto ao ponto: a Roda de Xangô.
A exemplo de vários momentos das Celebrações Litúrgicas corriqueiras durante as Festas de Candomblé, a Roda de Xangô é a reencarnação de um momento decisivo da vida e do trabalho de um Aláàfin (Imperador) do antigo reino africano de Oyó que ao deixar esse mundo, foi elevado a condição de divinizado por conta dos seus feitos e do seu reconhecido talento divino de comandar uma das forças da natureza mais pontualmente destruidoras: o raio. E essa força incomensurável se faz acompanhar de uma das manifestações sonoras mais aterrorizantes para o homem: o trovão.
Esse Imperador é Xangô
Havia um alto grau de profissionalismo no exército Imperial de Oyó e o seu sucesso militar se devia em grande parte à sua cavalaria, bem como à liderança e a coragem nos campos de batalha dos seus generais e guerreiros.
Como seu foco geográfico principal era as florestas do Norte, Oyó desfrutava de uma agricultura rica e variada e, portanto, gozava de um crescimento constante da sua população.
Isso contribuiu para a capacidade de Oyó de consistentemente agregar uma grande força de infantaria.
Havia também uma cultura militar entrincheirada em Oyó, que muito lembra a cultura japonesa dos samurais: a vitória era obrigatória e a derrota carregava o dever de cometer suicídio. Essa política de “vencer” ou “morrer”, sem dúvida, contribuiu para a agressividade militar dos generais de Oyó.
O Império de Oyó foi fundado por volta do ano 1300 sendo que Oranmiyan foi o primeiro Aláàfin. Ele foi sucedido por Ajaka, que foi deposto por que lhe faltava a virtude militar e, talvez por isso, era considerado “muito permissivo para com seus generais”.
Xangô, que mais tarde foi definido como a divindade do trovão e do raio, foi o terceiro Aláàfin.
Ajaka foi reconduzido ao trono de Oyó após a morte de Xangô.
Depois de morto, Xangô foi homenageado por seus súditos e até hoje é adorado e cultuado em todo mundo como o Deus do Trovão e do Raio
A disciplina militar de Xangô é uma característica desse Orixá que veio a somar para a reputação de ser um “Deus vingativo”, o que não corresponde a verdade.  
A Roda de Xangô resume essa história de disciplina militar férrea e inflexível e em algumas Casas emblemáticas do Culto ao Deus do Trovão isso é reencenado com a presença de vários avatares desse Orixá incorporados em indivíduos especiais entre seus súditos.
O cântico de chamamento da Roda de Xangô nos Candomblés da Bahia, me vem à mente na voz marcante do Ogã Reginaldo (vou reproduzir aqui uma adaptação do cântico como foi registrado por Altair T´Ogun)

Ele brada, anunciando o início da Roda dizendo:

Àrá ẹ̀yin a róòde...

Tradução adaptada: o seu trovão ressoa no espaço aberto

A assembleia responde:

Bàrà wọn nìkàsí o ní jẹ́ Kòso,

 Tradução:
Eles vão apresentar seus respeitos àquele que foi coroado. Vosso raio ao redor, no mausoleu real.
 
Reginaldo repete
Àrá ẹ̀yin a róòde...

Na terceira vez a assembleia assume o protagonismo e canta

Gbẹ́rẹ́ jẹ́ Òrìṣà sí gbẹ́ wá l’ọna
Gbẹ́rẹ́ jẹ́
Ki wọn gbà ẹ̀yin jẹ Eran´gùtàn, Ọba kò wọn so, wọn ó pàdé l´ọ̀na
Wọn nìkàsí rẹ̀, wọn ńbọ si àrá ẹ̀yin a róòde ...
Bàrà wọn nìkàsí o ní jẹ́ Kòso,
 
Reginaldo repete
Àrá ẹ̀yin a róòde...
 

 Tradução adaptada
De repente, o Orixá vem no caminho
Subitamente,
Ele contou os que ele abençou no caminho, que lhe deram carne de carneiro para comer, Ele os governa, e eles o encontram
No caminho e rendem-lhe seus respeitos
Eles cultuam seus raios, quando este os circunda no bara (mausoleu real).
Eles vão apresentar seus respeitos àquele que foi coroado. Vosso raio ao redor, no mausoleu real.
 
Referencias:

1.    Aṣe ati Òrìṣà Ilẹ Yoruba; pg. 285;


3.    List of rulers of the Yoruba state of Oyo; https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_rulers_of_the_Yoruba_state_of_Oyo (acessado em 30/11/18);

4.    OLIVEIRA, Altair B.; “Cantando para os Orixás”, 4ª edição,2007)

Sunday, November 11, 2018

Alé, o Orixá Terra



 
É certamente gratificante para todo o povo de santo ou melhor, para todos que se dedicam à causa Orixá, Vodun, Inquice e Encantados perceber que, contrariando um curso de intolerância, as nossas religiões seguem em franco processo de resgate das suas liturgias mais caras, transcendendo o muro de isolamento pela “demonização” unilateral e ignorante que lhes foi imposto pela sociedade escravista ocidental quando lhe atribuíram, em consonância com uma agenda que lhes reserva um papel secundário ou folclórico.
Não, definitivamente não.
A “Bahia dos Orixás” que foi transformada pela mídia ávida em um produto hibrido e reduzido a um conjunto de mimetizações tão repetidas ao ponto de serem “vendidas” como verdadeiras, indiscriminadamente, volta com tudo à causa da Ancestralidade africana.
Felizmente, há mais orixás envolvidos nos Templos da Ancestralidade do que aqueles listados pelas agências de turismo. Mesmo por que não se pode reduzir ao papel de folclore, uma postura e filosofia que, por exemplo, olha para o Planeta Terra dentro do universo e conclui que este é uma bola de terra exposta ao sol.
Essa é a visão do planeta em que vivemos, construída a partir de uma plataforma de Sabedoria: a terra é uma grande nave, muito nova, pela nossa contagem de tempo (4,5 bilhões de anos), imersa em um universo que lhe deu nascimento em uma das suas fases mais recentes de juventude ou maturidade.
E o que nós, humanos, somos para além de seres minúsculos agarrados com unhas e dentes aos poros dessa bola? Nada. Absolutamente nada. Não aparecemos com nenhum destaque sobre a bola vista dos Grandes Olhos do Universo. Nos confundimos com a propria superfície dessa bola, com seus sulcos, fraturas montes e depressões.
É o que isso diz o seguinte cântico:
 
          Alé máa sá

Gbai sá, Gbai sá

Alé máa sá

Gbai sá, Gbai sá

 

Tradução
 
           Alê está sempre (habitualmente, costumeiramente) se secando sob o sol

Intensamente se secando ao sol, intensamente.

Alê está sempre (habitualmente, costumeiramente) se secando sob o sol

Intensamente se secando ao sol, intensamente.
 

Para o Culto a Ancestralidade, Alé é o grande Irunmalé representado por essa enorme Bola de Terra viajando pelo cosmos, uma imensidão qua a torna tão pequena quanto esse ponto de segmento aqui no fim dessa frase.
Alé é essa bola de terra é o fundamento da existência humana, é o alento que mantém aquecido o primeiro sopro de vida do indivíduo humano enquanto aye.
E é assim também que Alé é Onilé a divindade da dádiva viva que nos dá solo e teto. E é na sequência do cântico acima que também se reverencia essa qualidade da bola terrena, catando:

 

Oyigiyigi rọ̀gún

Gbai sá, Oyigiyigi rọ̀gún

Oyigiyigi rọ̀gún

Gbai sá, Oyigiyigi rọ̀gún

 

Tradução
 
          Oyigiyigi que nos sustenta

Intensamente se secando ao sol, intensamente.

Oyigiyigi que nos sustenta
 
O termo “Oyigiyigi”, (Grande e Poderoso) é uma palavra dentre aquelas usadas como um nome atribuído a Deus, como criador de todas as coisas.
Alé é Onilé também na morte, no período pós vida terrena, por conta da sua atribuição de receptáculo coletivo dos eegun. É assim que se processa a sua eterna religação com a origem da capacidade de movimento dos Irunmalé encarnados que somos. Alé é a primeira a receber o sangue sacrificial, o ẹjẹ (ejé). Por isso, Onilé é Alé e é sempre bem-vindo por que sempre ali esteve. É por isso o cântico inicial para saudar esse Orixá reverbera essa realidade, entoando:

 

Alé Órìṣà,

Alé Bàbá O

Bàbá wá ´lé

Wá´lé Òrìṣà.

Ọlọmọ wò´lé

Bàbá´já

 

Tradução

 

Alé Orixá

Alé Pai,

Pai chega em casa

Chega em casa Pai

Pai (senhor dos filhos) olhe pela casa
 
Pai da luta

 

Referencias

1.    Oriki Olodumare Olorun;


2.    Imagem


 

Friday, November 2, 2018

E jí múdá’ saare wá, o Restaurador de almas chega cansado



 Hoje é dia 2 de novembro de 2018 e comemoramos o feriado de Finados, ou seja: todo o pais comemora nesse dia a “memória dos mortos”.
Mas para o povo do Candomblé a “memória dos mortos” é objeto de adoração diuturna e constante, visto que, a nossa concepção de Vida no universo físico não se reduz a uma manifestação carnal e temporária da divindade mediante um pacto animal.  
À divindade que é a essência motor desse "pacto" em cada uma das pessoas, se dá o nome de ìrúnlẹ̀.
Contudo, o autor Altair B. de Oliveira no livro “Cantando para os Orixás”, na página 133, no cântico 26 para o Orixá Oxum (4ª edição,2007) ele usa a palavra “ìrúnnmọlẹ̀”, que na tradução para o Português ( a qual ele anexa ao cântico) ele escreve a palavra “Irunmalé”, sem maiores esclarecimentos com relação ao seu significado.
Leituras diversificadas e uma relativa familiarização com o Culto a Ancestralidade me leva a reconhecer no motor do animal humano (seja “ìrúnlẹ̀”, seja “ìrúnnmọlẹ̀”, ou mesmo “Irunmalé”), uma presença etérea que desconhece o tempo como parâmetro diferenciador entre o que é eterno e o que é terreno.
Então, do ponto de vista do Candomblé Iorubá-quêto-jeje-nagô, a Vida Eterna começa muito antes do nascimento e consequente peregrinação animal do homem sobre a superfície desse Planeta. Melhor dizendo: a sua “Vida Eterna” não vai “começar” depois que você morrer visto ser essa "Vida", um Estágio Universal Onipresente por Todo o Sempre.
É a essa visão de Vida humana no universo físico que os sacerdotes afro-doutrinadores que estabeleceram e consolidaram os Fundamentos das liturgias Iorubá-quêto-jeje-nagô, associam à Senioridade absoluta da Vida Eterna. Quer dizer, o caráter de “Eternidade” é a expressão, em uma palavra, da constante evolução das relações de parentesco e pertencimento entre os indivíduos humanos, e é uma das tarefas atribuídas pela Divindade Absoluta , em algumas interpretações, aos Orixás Funfun (Orixás do Branco). Na interpretação que me é mais familiar, essa evolução é modulada pelos Orixás e/ou Nagô-Voduns da terra: o Clã de Sapatá, que é encabeçado por Nanã ( a Mãe fornecedora da lama rica em aminoácidos de onde se forma o corpo humano para a Vida) e reune as familias de energias (Voduns) da terra (Ayi) e os Orixás: Obaluayê, visto aqui como o “Senhor das Passagens”, já que orienta o ìrúnlẹ̀ para uma nova experiência de Vida, e Omolú, o filho que patrocina e traz a restauração do binômio “corpo+alma”. 
Essa restauração é referida como “múdára”, ou seja “fazer com que seja bom” (fazer com que fique bom) é dai que surge o cântico de louvor a essa energia no qual o solista diz: “Ẹ jí múdá´,múdá’ ṣ´ó rere!”, que significa literalmente “Ele desperta a restauração (do corpo e da alma) ,e isso o torna gentil”. E o coro dos fiéis responde:

Ẹ jí múdá’, Ẹ jí múdá’,

Ẹ jí múdá’ ṣaarẹ wá

Tradução: Ele desperta a restauração (do corpo e da alma),

Ele desperta a restauração (do corpo e da alma), está cansado, chega (vem para casa).

 

Referencia:

1.    Imagem;